Por Samara Megume Rodrigues*
Quem nunca foi tomado por uma sensação de estranheza diante
dos próprios atos e das circunstâncias da vida? Algo que atrai e seduz, mas ao mesmo tempo também choca,
provocando repulsa. Essa
sensação inquietante está
presente massivamente em filmes, na literatura fantástica, nas artes plásticas
sombrias e também está em nosso cotidiano. Trata-se daquela sensação que
surge quando, por exemplo, em um curto intervalo de tempo deparamo-nos com
situações ligadas a um mesmo número ou a um mesmo nome de pessoa – algo que,
principalmente para os indivíduos mais supersticiosos, pode adquirir um ar
secreto de sina ou maldição. Em diferente grau, é a mesma sensação despertada pelo
dito “mau-olhado”, agouro, em que tudo parece dar errado. Ou
ainda esse sinistro que aparece quando temos dúvida se um ser animado está
realmente vivo ou, ao contrário, se um objeto aparentemente inerte não seria,
na verdade, portador de vida. Essa sensação foi estudada por Freud (1919) e
nomeada de Das Unheimliche, que foi
traduzida em português como O Inquietante / O Estranho, em espanhol Lo Siniestro / Lo ominoso.
No artigo O
Inquietante (1919), Freud faz uma análise psicanalítica no terreno da
estética, pelo conto “O Homem de Areia” e
também do romance “Os elixires do diabo”,
ambos do escritor de E.T.A. Hoffmann. No
primeiro conto, Hoffmann constrói a personagem Olímpia, que é destaque por sua graça,
beleza e aparente vivacidade, o que a torna objeto de paixão do personagem principal,
Nathaniel. Com o desenrolar da história o personagem descobre que Olímpia não
passa de uma boneca, um autômato, fato que provoca certa estranheza no leitor.
Não é apenas a personagem Olímpia que causa essa sensação, no conto Nathaniel é
um personagem que possui um delírio de associação da morte de seu pai com uma
figura mítica de sua infância: O Homem de Areia. Esse por sua vez corresponde a
uma espécie de “bicho papão” da cultura alemã, figura que serve para auxiliar
as mães a mandarem seus filhos para cama sob ameaça de terem seus olhos
primeiramente feridos com areia e depois arrancados e roubados. No conto paira
a dúvida sobre a existência real ou não do Homem de Areia.
Freud (1919) faz uma análise etimológica da palavra Unheimlich, bem como suas diferentes expressões em outros idiomas, como o latim, o
grego, o inglês, o francês e o espanhol. Interessantemente, ele demonstra que
em seus sinônimos essa palavra apresenta paradoxos, sendo que em variadas
matizes ela coincide com seu oposto imediato, Heimlich (familiar/conhecido).
Assim, Freud (1919) conclui que sempre atrás de algo aparentemente incompreensível
ou atemorizante se esconde algo familiar, muito conhecido. Para que algo seja
inquietante, não basta que ele seja diferente do convencional, mas que tenha
sido algo anteriormente familiar. Ou seja, Freud (1919) conclui que existe
sempre uma sombra no aparentemente conhecido, um inominável que foi afastado,
deslocado (reprimido) da consciência. Citando Schelling “Unheimlich seria
tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu”. (Freud, 1919,
p.338).
O desassossego causado pela dúvida de seres inanimados terem vida
remonta a infância, a fase de desenvolvimento em que de fato a criança não
consegue distinguir ser vivo de ser não vivo – em que ela dá vida aos seus
brinquedos. A criança para conseguir expressar o que sente, transfere para seus
brinquedos e fantasmas seus medos, amores e angústias. Assim como no conto o medo de Nathaniel de
perder os olhos representa suas culpas infantis, que fazem com que ele tema
sofrer retaliações: perda dos olhos (castração).
No romance “Os elixires do diabo”, de Hoffmann (1815-16), Freud (1919) mostra outra fonte
intensa do inquietante. Trata-se do duplo
ou sósia, o surgimento de pessoas
que, pela aparência igual, devem ser consideradas idênticas, em que pode
ocorrer a intensificação desse vínculo entre os sujeitos pela passagem de
processos psíquicos de uma para outra (telepatia) – de modo que uma pessoa
possui também o saber, e os sentimentos e vivências das outras pessoas. Por
vezes a identificação com o duplo de si pode levar a confusão, ocorrendo a duplicação,
divisão e permutação do Eu. A
compreensão popular de alma imortal também representa o duplo, como uma medida
de segurança diante da sempre eminente ameaça de destruição do Eu pela morte. Freud
(1919) irá demostrar que esse duplo trata-se da formação de uma instância
psíquica que, embora gerada a partir do Eu, dele se apartaria, exercendo sobre
si uma atividade de observação e censura: a consciência moral – termo que será
um prenúncio do conceito de Supereu, após os trabalhos de Além do Princípio de Prazer (1920) e O eu e o isso (1923).
O inquietante
é a sensação causada pela percepção da compulsão
à repetição, em diferentes situações. Como quando identificamos traços
faciais entre pessoas, vicissitudes, nomes, situações de nossa vida, que se
repetem. Trata-se do eterno retorno do mesmo, a aflitiva sensação de que existe
uma determinação oculta em nossa vida. Freud (1919) demostra que essa é
justamente a natureza própria da pulsão; cujo poder de subjugar nossa busca de
realização e prazer confere um caráter demoníaco a certos aspectos de nossa
vida anímica.
Nas diversas manifestações do estranho, em maior ou menor grau, paira uma relação íntima com a nossa onipotência de pensamento, pois cremos que o pensamento por si só é capaz de determinar as ocorrências da realidade. Freud (1919) analisa as raízes individuais e sociais dessa onipotência.
Nas diversas manifestações do estranho, em maior ou menor grau, paira uma relação íntima com a nossa onipotência de pensamento, pois cremos que o pensamento por si só é capaz de determinar as ocorrências da realidade. Freud (1919) analisa as raízes individuais e sociais dessa onipotência.
O que é
extremamente rico e inovador nesse trabalho de Freud é a forma como ele aborda
o estranho (diferente) – que nunca é visto como um exato estrangeiro, mas
detecta a estranheza do inconsciente, como aquilo que é inominável de nós
mesmos. Desta forma, o estranho só nos choca, porque toca no sinistro que vive
em nós. Como na música do Pink Floyd “Brain
Damage”, o lunático que identificamos fora, na verdade vive em nossa mente,
ele é o próprio Dark side of the moon,
o nosso lado obscuro. Essa aflitiva estranheza é também a nossa! Daí o perigo
de projetarmos o estrangeiro no outro, que encarnará os próprios conflitos. Assim,
a psicanálise demonstra que todos nós somos estrangeiros e ironicamente
habitamos o mesmo inquietante lugar: a condição humana de desamparo – que é a
condição última de nosso ser conosco e de nosso ser com o outro.
O Unheimlich surge desse entremeio, o Eu
e o outro, em que algo não pode ser nomeado e por isso os limites frágeis do
nosso eu parecem ser extrapolados, o que é fonte do sobrenatural. Esse algo
estranho parece nunca poder ser verbalizado, mas por vezes aparece simbolizado
em formas belíssimas, como nos filmes de Alfred Hitchcock ou na literatura
magnífica de Edgar Allan Poe.
Que ousadia - a
psicanálise se aventura a adentrar esse estranho lugar! Busca dizer o
indizível, por isso Freud (1925,1937) escreveu que ela é uma profissão
impossível! Aliás, como é inquietante a
figura do analista. É ainda mais estranho a existência do desejo do analisando
que, a partir do divã ousa (se) perguntar. Por meio desse encontro, o sujeito
que pergunta pode vir a se dar conta que esse outro a quem ele destina ódio não
passa de um duplo de si mesmo. Por
meio da transferência, ele pode vir a ser sujeito consciente de suas próprias
diferenças, e sinta-se mais a vontade para conviver com as diferenças alheias. Somente
escutando o monstro/louco que há em nós podemos nos implicar com os seus/nossos
inquietantes desejos, com nossa agressividade e sexualidade, revivendo (e não
só rememorando) esse outro de si mesmo. Nos permitindo assim dar novo estatuto
à vida, criando possibilidades diante do impossível que é o inconsciente,
readquirindo sua dimensão poética e de potência criativa.
*Samara
Megume Rodrigues é psicóloga clínica, mestranda em Psicologia,
colaboradora e idealizadora da Roda de Psicanálise.
** Imagem: gravura de Jacques Callot, "Le Deux Pantalons" , de 1616.
** Imagem: gravura de Jacques Callot, "Le Deux Pantalons" , de 1616.
Referências Bibliográficas
Freud, S.
(2010) O Inquietante. In: Obras Completas de Sigmund (Paulo Cesar Soura, Trad.
Vol 14) São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Originalmente publicado em
1919)
Freud, S. (1996) Prefácio a Juventude desorientada de Aichhom. In: Edição Standar Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1925)
Freud, S. (1996) Prefácio a Juventude desorientada de Aichhom. In: Edição Standar Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1925)
Freud, S.
(1996) Análise terminável e interminável. Edição Standar Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago(Originalmente
publicado em 1937)
Gostei muito do seu texto. Muito simples e claro. Tomás Miguez, Portugal
ResponderExcluirtomasmiguez@hotmail.com
Maravilhosoooooo!
ResponderExcluirMuito bom! Parabéns, citarei nas minhas publicações. Obrigada.
ResponderExcluirExcelente reflexao sobre o texto freudiano "O Estranho". Parabenizo pelo rigor com que abordou os conceitos,
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