Desde suas origens a
psicanálise sofre ataques, seja pela descoberta de seu objeto, o inconsciente,
pelo método de investigação, seja pelo campo de pesquisa e atuação, a clínica.
Enfim, mais de 100 anos se passaram desde a invenção da psicanálise e ainda há
grandes embates teóricos a respeito de suas origens epistemológicas na
tentativa de colocar em cheque seu estatuto científico e consequentemente sua
validação enquanto procedimento terapêutico. Tal como em seus primórdios os
ataques não advinham apenas de seus opositores e adversários, os maiores
ataques vieram de dentro da psicanálise.
Ana Maria Rudge (2006)
em seu texto, As teorias do sujeito
contemporâneo e os destinos da psicanálise, argumenta sobre a necessidade entre os psicanalistas de situar sua
ciência em nosso tempo histórico com o objetivo de aplacar as críticas que são
cada vez mais ferrenhas. Em ataque ao olhar psicanalítico à singularidade há a
acusação de ignorar as dimensões históricas e políticas do sujeito
contemporâneo.
Rudge (2006) considera
legítimos os esforços dos psicanalistas em buscar compreender a realidade
cultural, contudo, considera “saídas um tanto apressadas e simplistas que
evitam a via mais árdua da construção de teoria” (p.12) que chegam a ter efeito
oposto à revitalização do campo psicanalítico e acabam se aliando ao ataque à
psicanálise, considerado pela autora, uma “identificação com o agressor”. Como
exemplo, Rudge (2006) destaca as hipóteses de Charles Melman em O homem sem gravidade, considerando essa
publicação um paradigma justificado pela repercussão entre os psicanalistas
brasileiros e franceses. A ideia de Melman (2008) é a de que precisamos de uma
“nova versão psicanalítica do sujeito contemporâneo”, e que uma “nova economia
psíquica” estaria organizando o psiquismo, isto é, a economia psíquica passada,
pautada na psicanálise clássica de Freud, organizada pela repressão, estaria
superada, dando lugar à exibição do gozo. Por estes e outros ataques é que se
anuncia uma “crise” da Psicanálise.
Entendemos que “crise”
não seria o termo mais assertivo, uma vez que remete a um momento crítico e
decisivo. A história do movimento psicanalítico nos revela que os ataques
sofridos pela psicanálise atualmente são de natureza semelhante aos presentes
em seu surgimento - e que a acompanham desde então. À vista disso, pensamos com
Freud (1925/2006) e compreendemos este momento como típico, um movimento de
resistência, próprio da psicanálise, uma vez que remonta a sua a própria
história.
Freud em As resistências à Psicanálise (1925/2006)
evidencia que as críticas a sua ciência não ficaram no plano intelectual das
discussões epistemológicas, elas foram além, e vieram carregadas de exaltação
dos humores e conclui que as explosões de indignação e escárnio sugerem outras
resistências. As resistências são atribuídas ao fator sexual da teoria
psicanalítica, ou melhor, a força da sexualidade, de Eros, tanto na vida
individual normal e patológica, como no âmbito das realizações culturais de
mais alto valor para a sociedade. A principal crítica no plano individual foi a
respeito dos sintomas das neuroses constituírem formas substitutivas de
satisfação sexual, revelando o caráter patogênico que os padrões sociais
excessivamente rígidos podem infligir ao indivíduo; a psicanálise foi acusada
de pansexualismo e assim, uma ameaça
a sociedade por incentivar a promiscuidade. No plano social/cultural foi
acusada de ferir, degradar os mais elevados valores culturais ao sustentar que
a arte, a religião, e a ordem social, são também originadas de uma contribuição
da sexualidade desviada de seu objeto imediato.
Enfim, desde sua origem
as resistências mais fortes à psicanálise surgiram de fontes emocionais, de
“algo” que a psicanálise anuncia e denuncia, e do qual não queremos saber. Partimos dos argumentos do próprio Freud e
levantamos a hipótese de que ainda resistimos à descoberta psicanalítica da
teoria dos instintos/pulsão, ainda resistimos à sexualidade infantil,
resistimos ao caráter primordialmente sexual na origem de nossa mente.
Resistência marcada seja pelo escárnio dos adversários da psicanálise, ou pela
racionalização conceitual demasiada, muitas vezes dos próprios psicanalistas ou
estudiosos da psicanálise, que transformam a força indomável das pulsões em
abstrações e intelectualismo, como observou Freud.
Freud (1925/2006) admite,
com pesar, que os psicanalistas não fogem a resistência que a psicanálise
desperta. Entendemos também que da mesma maneira que se reivindica uma
“psicanálise contemporânea”, uma psicanálise diferente da do pai, existe a dificuldade
de renunciar o prestígio e proteção que a psicanálise representa e assumir-se e
arriscar-se por conta própria. E assim, tal como o filho deseja, se
desagrilhoar do pai, tido como conservador.
Sabe-se da importância
que o tempo histórico e a cultura têm para o pensamento psicanalítico, enfim,
“que o social é constitutivo da subjetividade humana”. (Honda, 2009, p.97). Não
podemos deixar de evidenciar, entretanto, que a postura dos psicanalistas
“resistentes à psicanálise” possam estar motivadas também pela ideologia da
pós-modernidade, em que se rechaça com veemência as metanarrativas, as teorias
explicativas e organizadoras, os clássicos, enfim, em linguagem psicanalítica, aos
impulsos ambivalentes direcionado ao pai.
A análise de Freud a
respeito das resistências à psicanálise nos leva a refletir sobre esta possível
“crise da psicanálise”, e lança luz ao momento social e cultural que estamos
vivenciando atualmente. Mesmo com o
desenvolvimento tecnológico e científico acumulados, ainda os impulsos
implacáveis e ambivalentes que habitam o humano não deixaram de impor sua força
e com a mesma intensidade que nos atingiu nos primórdios da civilização.
Talvez a resistência à
psicanálise não dure para sempre como Freud pensou, entretanto, sabemos que esta
ciência ainda fere o narcisismo humano, ainda fere nosso desejo de onipotência,
de completude. Sabemos também que ela
continua a denunciar e criticar o funcionamento da sociedade, pois, o mal-estar
se instala em qualquer tempo, em qualquer cultura. Entendemos que por mais que
mudanças sociais, econômicas, culturais tenham ocorrido neste intervalo de
tempo, a civilização ainda se sustenta na repressão dos nossos instintos.
Por Isabelle Maurutto Schoffen
Isabelle é psicóloga
clínica, mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá,
colaboradora e idealizadora da Roda de Psicanálise: teoria, clínica e cultura.
Obra divulgada: "Divã"
*não foi possível encontrar o nome do artista.
Referências
Freud, S. (2006). As resistências
à Psicanálise. In Edição standard das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 235-248). Rio de Janeiro:
Imago. (Trabalho original publicado em 1925)
Honda,
H. (2009). Subjetividade e Metapsicologia: a constituição conceitual da
realidade psíquica. In: A. E. Tomanik, A. M. P.
Caniato, & M. G. D. Facci (Orgs.) A
Constituição do Sujeito e Historicidade. (pp, 63-104). Capinas: Alínea.
Melman, C. (2008). O homem sem gravidade – gozar a qualquer
preço. (Sandra Regina Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro: Companhia de
Freud.
Rudge, A. M.
(2006). As teorias do sujeito contemporâneo e o destino da psicanálise. In Ana
Maria Rudge (org). Traumas. (pp.
11-21), São
Paulo: Escuta.
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