O
carnaval não é uma festa nova, ele já está presente nas origens gregas de nossa
civilização ocidental. Era uma festa profana de culto a fertilidade, comemorada
com sexo e vinho, um culto ao deus Dionísio. Moderna é a forma como foi
apropriado e transformado na cultura. Nova é a forma como os conglomerados de
comunicação se debruçam sobre essa festa. Como eles, muitas outras empresas
lucram com a alegria fabricada, a felicidade, às vezes vazia de quem se compraz
em se sentir inserido na festa da democracia do espetáculo.
Já há
alguns anos o governo distribui gratuitamente e de forma massiva milhares de
camisinhas para os foliões. Também gastam milhões em propaganda com o intuito
ensinar as pessoas a não dirigirem embriagadas e fazerem suas necessidades
fisiológicas em local apropriado. O que pode demonstrar que essa festa está
mais para os instintos animais do que para a cultura propriamente dita.
Sexo,
suor, nudez, vaidade e fantasias. Há uns anos atrás o ritmo que embalada o
carnaval eram as marchinhas e o samba, com letras de duplo sentido, com
ironias, insinuações. Hoje tudo é escancarado, o ritmo é o da mistura. Pagode,
funk, sertanejo, samba, eletrobrega, a micareta, tudo misturado, tudo muito
alto. O intenso barulho externo parece evidenciar a mudez interna. O que grita
mais alto é o corpo. Na festa da carne
tudo é físico, visual, exagerado, autoglorificador, afinal, no carnaval “pode
tudo”
O
crítico literário Mikhail Bakhtin (1996) empreendeu um belíssimo estudo sobre a
cultura cômico-popular. O autor analisa como foi construída a percepção
carnavalesca, ou carnavalização da cultura. Essa percepção tem origem no
romantismo, em sua filiação com o realismo grotesco, em que ocorre uma
subversão dos valores, uma crítica em ato
a algumas normas e leis que regem a tradição, principalmente às hierarquias da
vida social e as fronteiras que delimitam o humano do animalesco.
No
carnaval a ordem é negar o pai e sua lei que é obedecida o ano todo, com tanto
pesar. E se é em nome dessas leis que nos tornamos civilizados, podemos agora
celebrar nossa parte animal. (Nada mais irônico do que o Papa Bento XVI
renunciar a paternidade da Igreja católica em pleno carnaval, mas isso é outro
assunto...)
No
dia-dia abrimos mão de muitos desejos e vontades, reprimimos partes importantes
de nós mesmos para poder sobreviver na “selva de pedra”. Se aguentarmos calados
a rotina do trabalho e das violências sociais, obedecendo a grande lei da
competição - em que a vida é transformada numa corrida rumo ao nada - podemos
agora transgredir. Jogar essas
imposições para o alto e enfim, realizar vontades e desejos. Mas essa
realização não pode ser feita sozinha, pois um único sujeito levaria a intensa
culpa e responsabilização. Então, o carnaval pode ser oferecido como um espaço coletivo para a vazão
de nossa revolta contra a vida civilizada que levamos.
Minuciosamente
fabricado, ele não aparece como um espetáculo lucrativo para muitas empresas,
mas como que surgindo espontaneamente de nossos corações. O carnaval é pra
todos! Podemos nos entregar ao coletivo e nele “sermos o que quisermos”, nos
divertir e nos libertar. O que ocorre, entretanto, é que essa liberdade além de
vil é falsa, pois a forma de divertimento é predeterminada. Captados pelas
frustrações e angústias cotidianas não percebemos que mais uma vez estamos
reprimindo a nossa individualidade, realizando vontades que não sabemos se são
realmente nossas.
Então,
entregues ao coletivo “todos somos um”. Somos levados pela batida dos corpos,
pela embriaguês do momento. Ao contrário do que possa parecer esse movimento de
massa pode expressar um intenso individualismo. Pois o coletivo representa, na
fantasia de quem está inserido uma imagem potencializada de si mesmo, o “ideal”
que a pessoa gostaria de ser. Assim é possível negar as diferenças individuais:
as individualidades (lembrando que individualidade e individualismo são
conceito bem diferentes), negar a existência de expectativas e anseios
diferentes. - Freud (1921) analisa esse
fenômeno minuciosamente, em seu trabalho “Psicologia
de massas e análise do eu”.
Vale
tudo, menos ser verdadeiro, ser um “eu mesmo”, vale vestir a máscara e se
comportar com um outro, que nunca se foi realmente.

A
máscara é a criação de um personagem (como as personas do teatro). Criamos máscaras simbólicas para encobrir o
medo de sermos rejeitados por aquilo que somos. Encobrimos nosso desamparo
humano. Elas são usadas como ferramenta de adaptação, um recurso de defesa
psíquica. O que ocorre é que podemos nos apegar demasiadamente aos papéis que
exercemos, esquecendo de que nós é quem somos os autores da história, de nossa
vida pessoal, de nossas escolhas. Fernando Pessoa(1999), em um trecho de seu
poema Tabacaria, descreve belamente o processo de criarmos máscaras como
ideais de nós mesmos, diz assim:
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
A máscara pregada à cara só pode ser retirada por uma outra
pessoa. Rubem Alves escreveu certa vez que ela só desprega da nossa pele quanto
tocada pelo amor. Assim sabe-se que está amando, quando, diante da pessoa
amada, a máscara cai e voltamos a ser crianças. Por isso o tamanho medo amar e
de se entregar em uma relação amorosa, de
se livrar das máscaras, pois ela nós faz
criança novamente, enuncia nosso desamparo infantil e a intensa necessidade de
ser reconhecido, protegido e acolhido pelo ser amado. Como escreveu Freud (1930,
p.74), “jamais estamos tão desprotegidos
contra o sofrimento do que quando amamos, jamais nos tornamos tão desamparadamente
infelizes quando perdemos o objeto de amor”
Não é a toa que toda a
onipotência, a sensação de não depender de nada, nem de ninguém, a frieza
efusiva da festa do carnaval acaba justamente na quarta-feira de cinzas, em que os restos de quem nunca fomos podem
ser jogados ao vento. Podemos novamente renascer para aguentar calados os
sofrimentos do dia-dia, pois os poucos dias de festa fez parecer que tudo valeu
a pena. As serpentinas já foram gastas, a roupa será lavada e quem sabe outras
máscaras nos serão oferecidas para o dia-dia, mais sóbrias, talvez mais
obedientes.
* Samara Megume Rodrigues
Referências
Bakhtin,
M. (1996). A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São
Paulo-Brasília: Edunb/Hucitec.
Freud, S. (2011). Psicologia de massas e análise do eu. In S. Freud. Psicologia de massas e análise do eu e outros textos. (P.C, de Souza, Trad.) São Paulo: Companhia das Letras, p.13-133. (Texto original publicado em 1921)
Freud, S. (2011). O mal-estar na cultura. (R. Zwick, Trad.). Porto Alegre: L&PM. (Texto original publicado em 1930).
Pessoa, F. (1999). Poemas de Álvaro de Campos.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
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