Mais de 100 anos se passaram
desde a invenção da psicanálise. Por isso alguns questionariam: será que ela
responde, ou melhor, ela dá sentido, aos problemas que vivemos nos dias de
hoje? As atuais explicações biológicas, essencialmente cerebrais sobre as dores
e sofrimentos psíquicos trazem modernas soluções químicas de fácil acesso nas
farmácias que prometem alivio imediato da dor.
Soma-se a
esse fato outro fenômeno comum, que não ocorre
somente com a psicanálise, mas com grande parte de teorias complexas: a
banalização, que reduziu (e reduz) a psicanálise a uma espécie de
religião secularizada que possui resposta para tudo (Freud explica); numa
proposta ética pouco exigente (libertação
sexual); e numa ingênua promessa de felicidade (uma vida sem culpa).
Ora atacada, ora banalizada a
psicanálise perdeu espaço para as soluções enlatadas, para teorias que prometem
a cura do sofrimento de forma rápida e eficaz, para a utilização massiva de
substâncias químicas, entre elas, os fármacos. Como bem apontado por Roudinesco
(2000) longe de contestar a utilidade dessas substâncias químicas e desprezar o
conforto que elas trazem, é certo que elas não podem curar o homem de seus
sofrimentos psíquicos. Felizmente, nenhuma ciência pode por fim às paixões, a
loucura, a impossibilidade de estar sempre feliz, e ao amor! Nenhum avanço
tecnológico ou farmacológico poderá contornar os conflitos
imanentes à condição humana, como a sexualidade, a agressividade, a morte, o
convívio em sociedade, o desamparo.
A psicanálise revelou que o sofrimento psíquico
deve ser tratado a partir de suas causas mais profundas, sobretudo as
inconscientes, e por isso não podemos nos conformar com uma ação paliativa que
reduz a subjetividade ao funcionamento cerebral, na química dos
neurotransmissores, ou seja, ao nível farmacológico que cala o sintoma. Não se trata de invalidar a
farmacologia que tem ajudado e muito na qualidade de vida de sujeitos em
sofrimento, mas é preciso contextualizar o uso abusivo que se faz de
antidepressivos, antipsicóticos e ansiolíticos.
Essa tendência à medicalização pode indicar uma busca para abafar a
angústia e calar os fenômenos sociais. Por exemplo: em uma sala de aula é
difícil não encontrar crianças que fazem uso da, já tão conhecida, ritalina. Essa
prática medicamentosa comum e corriqueira substituiu a reflexão sobre o
sofrimento da criança e calou alguns questionamentos importantes, como o porquê
da criança não se adequar à sala de aula ou, o que não está soando bem entre
ela e o ambiente escolar que ela freqüenta. Não se examina mais qual é esse
ambiente.
Sabemos que a farmacoterapia mesmo embasada em matriz material
(cerebral), possui seus entraves, como qualquer outra droga. Seus efeitos
terapêuticos correspondem a uma parcela da população e não funcionam para todos
os tipos de pacientes, mesmo aqueles que possuem o mesmo diagnóstico. É ilusão
acreditar que é possível isolar uma idéia patogênica, como se isola um vírus, e
desta forma combatê-lo. Para a psicanálise o sintoma é uma forma de estar no
mundo de existir e deve ser compreendido.
O uso abusivo de substâncias químicas, a busca por soluções e terapias
que tragam alívio imediato, o intenso consumismo, são atitudes e fenômenos
atuais, produtos de uma sociedade do excesso, em que ocorre uma intensa
veiculação de informações, objetos, tecnologias e imagens que se apresentam como necessidades, como substitutos do
nosso desejo. Todos esses meios
contém a mensagem de que é possível abolir qualquer falta ou vazio, qualquer
insatisfação. Em tal sociedade não se é permitido sentir pequenas dores ou
prazeres. Tudo deve ser intenso, intensificado pelo consumo das mercadorias,
sejam elas químicas ou não.
Instalou-se um generalizado
entusiasmo esfuziante, e quem não se enquadra nele não está apto a exercer a
sua cidadania do espetáculo, não é digno de aplausos e olhares. Nesse mundo,
não há tempo para sofrer ou para se angustiar (afinal, tempo é dinheiro!). Não
é mais possível falar sobre o próprio sentir, para além da exibição padronizada
e pré-determinada das redes-sociais. Por que optar por um tratamento prolongado
e profundo quanto podemos comprar a “solução” em apenas algumas sessões, ou
ainda, adquirir pílulas mágicas, criando “paraísos artificiais”, por meio do “envenenamento
de nosso espírito” - como bem escreveu Baudelaire (2005).
O que a psicanálise se propõe é
ouvir e dar nome a “coisa” que está adormecida, esquecida, ao que é
inconciliável ambivalente na nossa alma, a ouvir as deformações de nossa alma,
porque nelas subjaz nossa história, que muitas vezes não é glamorosa como desejamos,
a contragosto nossa história é dolorosa, vergonhosa e até mesmo traumática. No
entanto, é nela que permanecem os traços das nossas escolhas, dos nossos
desejos, dos nossos limites, enfim, dos traços que nos compõem e nos tornam
únicos. A psicanálise se propõe entrar
nas profundezas do ser, apoiado em uma escuta direcionada por um método e
técnicas precisas que proporcionam um ambiente seguro e de amparo.
A proposta da psicanálise,
portanto, incomoda e atrai críticas principalmente oriundas da psiquiatria e
das psicologias com base somente
no comportamento e na consciência ao,
justamente, não pactuar com a superficialidade que
estes dados apontam e o imediatismo que perpassam a vida cotidiana
atual. Assim, podemos concluir que as características da cultura e sociedade contemporâneas, não invalidam a Psicanálise enquanto teoria e método clinico eficaz, mas sim a faz
perturbadora. O aspecto crítico da psicanálise funciona como uma espécie de
proteção ou precaução contra a cegueira e alienação que a qual estamos
submetidos e que, na verdade, nos faz sofrer ainda mais. A psicanálise nos
convoca a voltar nosso olhar para o absurdo (o obscuro, o contraditório) que
nos constitui e, na medida possível para cada um de nós, ajuda a nos reconciliar com ele,
com nós mesmos.
*Isabelle Maurutto Schoffen
*Samara Megume Rodrigues
*Thais Becker de Campos
Referências
Roudinesco, E. Por que a
psicanálise? Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
Baudelaire, C. Paraísos Artificiais. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
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